Zeca Ligiéro

July 4, 2017

KARPA 10 (2017) : TEATRALIDADES, DISIDENCIAS y LIMINALIDADES, II    ~     HOME PAGE     Journal of Theatricalities and Visual Culture   /  Revista de Teatralidades e Cultura Visual  ~  ISSN: 1937-8572   ~  Peer-reviewed Publication Indexed by the MLA International Bibliography & EBSCO  ~  General Editors: Paola Marín & Gastón A. Alzate  ~  GUEST EDITORS:  Eduardo Reinato, Roberto Abdala Jr. e Robson Camargo   ____________________________________

 

"Motrizes culturais – do ritual à cena contemporânea a partir do estudo de duas performances: Danbala Wedo (afro-brasileira, do Benin, Nigéria e Togo) e Sotzil Jay (Maia, da Guatemala) (PDF)

 

 

Zeca Ligiéro ]

Universidade Federal de Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)  

 

Violeta Luna. Maíz.
 

O Deus Jaguar na peça Oxlajuj. B’aqtun. Acervo Sotz’il Jay. Foto: Zeca Ligiéro

 

] Zeca Ligiéro Ph.D NYU, professor da UNIRIO, um dos fundadores do Instituto Hemisférico de Performance e Política, Coordenador do NEPAA – Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias, encenador, artista, e autor de mais de uma dezena de livros publicados em português, inglês, espanhol.

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Resumo: Ao utilizar o seu próprio conceito “motrizes culturais”, compreendido como uma série de procedimentos cênicos, dentre os quais o inseparável quarteto “cantar/dançar/batucar/contar” como ferramenta fundamental para recuperar comportamentos ancestrais, o autor traça um estudo comparativo de como performances contemporâneas distintas, de diferentes continentes, uma com raízes na África (Ewe, Fon, Iorubá) e a outra genuinamente Ameríndia (Maia) processam artisticamente estes materiais a seu próprio modo, empregando semelhantes dispositivos, criando a partir do ritual uma exuberante performance, caracterizando o que é conceituado no presente artigo  como “Outro Teatro”.

Palavras chaves: Ritual / Performance Cultural / Performance Afro-ameríndia

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Estas voces que vienen de los primeros tiempos hablan a los tiempos que vienen. Brotan de la memoria de los mayas pero dicen lo que dicen para que las escuche el mundo, que a los tumbos busca rumbo tanteando en la noche, perdido como ciego en un tiroteo. Y estas voces nos recuerdan que el centro del Universo está en cada uno de nosotros, porque está en cada uno de los frutos que brotan en cada instante del tiempo y en cada lugarcito de la Tierra. Y nos invitan a recrear el hilo roto de la vida, a sanar la violada dignidad de la naturaleza y a recuperar nuestra perdida plenitud.[1] Eduardo Galeano, em Raxalaj Mayab´K Aslemalil. Cosmovisión maya, plenitud de la vida, Diversidad Étnico-Cultural: la ciudadanía en un Estado plural, Guatemala, 2005.

 

         A pluralidade das culturas trazidas da África negra apresenta um paralelo com a multiplicidade das culturas nativas das Américas. Para melhor entender o paralelismo de suas performances culturais torna-se importante pensar tanto os respectivos contextos sociais, étnicos e históricos, bem como suas concepções filosóficas e crenças condensadas nos elementos comuns, que as compõem, submetidos a processos que tenho definido como “motrizes culturais”, empregados no restauro/reiteração de comportamentos ancestrais tanto no âmbito do ritual como em arenas do divertimento contemporâneo. Portanto, este estudo procura dar conta tanto de se aproximar de disciplinas como antropologia, história, filosofia, além dos estudos sobre as artes cênicas, dança, música, como também das artes visuais e sua rica literatura oral, para entender a continuidade de um teatro arcaico e ou pré-dramático em diferentes países da África, das Américas e em distintas comunidades brasileiras, não somente com o intuito de guardar e preservar tradições mas, na maioria das vezes, de dialogar com o mundo atual por meio das técnicas milenares de suas performances, calcadas no inseparável trio cantar/dançar/batucar ou ainda, em alguns casos, nos quais detectei o uso da “narrativa”, passando a compor um inseparável quarteto com o “contar”. A força da dinâmica em si, se encarrega de centralizar no corpo do performer o que normalmente é percebido como algo separado na centrifugação do consumo ocidental, onde os universos da música, da dança e do teatro se apartaram para desenvolverem-se como arte autônoma. Nestas performances tradicionais ou criadas por artistas contemporâneos, como vamos analisar em seguida, o quarteto cantar/dançar/batucar/contar, se une em um inseparável todo para suspender o tempo cronológico e adentrar num ciclo mítico, transcendental, estabelecido pelo performer na presença dos espectadores, na maioria das vezes invocando ou incorporando as forças da natureza. Estas motrizes são conhecidas pelos mestres, sacerdotes ou xamãs como o próprio fundamento da tradição, seja ela ameríndia ou africana. Nota-se, ainda, que muitos outros elementos podem ser adicionados de acordo com os contextos onde a cena acontece e, neste caso, podendo se transformar e se transvestir absorvendo distintos figurinos, objetos e adereços do mundo contemporâneo sem, contudo, perder sua identidade original. Como algo que pode ter distintas embalagens, mas mantendo em seus corpos dinâmicas com processos semelhantes, embora acontecendo em culturas que, na maioria dos casos, não tem contato entre si. Em seus conteúdos explícitos, podemos observar em ambas, as africanas, na diáspora brasileira, e/ou as ameríndias, em seus processos de resistência dentro das aldeias ou em contato com a sociedade de consumo, um profundo respeito pela natureza em todos os desdobramentos físicos e simbólicos, combinado com princípios éticos preservados pela memória dos mais antigos ou pelos mestres, brincantes, sacerdotes que unem práticas filosóficas humanistas com exemplos de dedicação. Os rituais, as danças, os ritmos e os mitos dessas culturas têm providenciado um enorme manancial para autores, pintores, compositores, dançarinos e artistas plásticos, que não necessariamente pertencem às comunidades ou foi iniciado em seus ritos, mas que incorporam as tradições e algumas de suas dinâmicas culturais (motrizes). Embora pesquisas tenham sido conduzidas de forma criteriosa por antropólogos ou sociólogos, estas performances culturais não foram analisadas em conjunto, enquanto fundamentos estéticos e filosóficos, em estudos comparativos.

         É sabido que a troca entre indígenas e negros é notável durante os processos de escravidão e fugas, sofridas igualmente pelos dois povos, obviamente em circunstâncias históricas diferentes, ainda que pouquíssimo estudo comparado tenha sido feito nesse sentido a respeito das suas culturas no que tange às suas performances culturais. As poucas referências são ainda um entrave para o aprofundamento nesta fase dos meus estudos.               

         A tentativa de aproximar os universos das tradições Afro e Ameríndia não pretende apontar para origens comuns ou crenças similares, ou mesmo equivalentes. Trata-se de um exercício de compreensão de processos únicos de criação e apresentação comunitária, onde são repetidos alguns procedimentos técnicos para elaborar performances com caráter litúrgico, em que está previsto também o entretenimento como forma comunitária de devoção e de reconhecimento de signos e símbolos comuns por meio das linguagens cênicas. Em ambas as tradições a convivência com o sagrado e com a sabedoria ancestral se contrapõe à adversidade da globalização, da banalização e a mercantilização da arte.

         Nos últimos anos, como metodologia de trabalho, para dar conta de entender as dinâmicas das diversas manifestações que procedem de diferentes matrizes culturais africanas e que são reprocessadas nas Américas, desenvolvi o conceito de “motrizes culturais”, já publicado em diversos artigos e sempre aplicado às performances afro-brasileiras, conceito este que passarei a utilizar, também, em relação à tradições ameríndias e que resumo aqui para melhor compreensão desta análise.

 

O conceito de motriz como fundamento cultural

            Para entender as relações do corpo com a espiritualidade e a filosofia africana principalmente dentro do ritual (candomblé, umbanda, jongo, folia de reis etc.) e também em situações do entretenimento (samba, futebol-arte-negro etc.), no sentido de resguardar a tradição, desenvolvi o conceito de “motriz cultural” como processo de entendimento da continuidade de performances africanas no Brasil, ao invés do termo “matriz”, largamente conhecido e empregado entre adeptos e admiradores das performances afro-brasileiras (Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras). Procurei destacar “um conjunto de técnicas aplicadas simultaneamente com o cantar-dançar-batucar” (Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras 157), expressão cunhada por Fu-Kiau para indicar o denominador comum das performances africanas negras (“A powerful trio: drumming, singing and dancing”).

            Considero ainda um outro valor agregado a essas dinâmicas, o da ocorrência da simultaneidade de ritual e jogo dentro da mesma performance, para o qual utilizo os conceitos de jogo e ritual de Schechner (Ligiéro, Performance e antropologia de Richard Schechner). Outra chave é o conceito de “recuperação do comportamento”, do mesmo autor (Schechner, Between theater and anthropology), empregado para entender a instauração de dinâmicas que geralmente pertencem ao campo das artes (música, dança, canto, jogo dramático) para criar o corpo dilatado do performer, induzindo-o ao transe e ao contato com o mundo dos ancestres A performance de origem africana, ao mesclar o jogo (a brincadeira) com o ritual, empresta a toda tradição popular brasileira um tônus e uma rítmica própria, criando uma literatura corporal que muitos identificam genericamente como “brasileira”. Uma forte característica das performances afro-americanas, em geral, é justamente a via dupla entre o jogo (a brincadeira) e o ritual. Aspectos comumente tidos como opostos nas religiões ocidentais, encontram nas chamadas celebrações tradicionais afro-americanas um campo fértil de distensão e reencontro com as forças da natureza, essas também, simultaneamente, ordenadas e caóticas.

            Entre essas performances destaco a presença do cantar-dançar-batucar, bem como a incidência do jogo dramático no ritual, que constrói, sem dúvida, uma performance afro-brasileira sem, contudo, que o elemento étnico seja o preponderante. Desta forma, muitas vezes, a maioria dos participantes não pertence ao mesmo grupo étnico e o ritual ocorre de igual maneira, como se toda a comunidade fosse composta exclusivamente pela mesma etnia.

            Seguindo a análise, destaco a importância do corpo dançante do devoto/participante, onde todo o processo ocorre, no caso do afro-brasileiro. As dinâmicas das motrizes culturais se processam no corpo do performer como um todo. Neste sentido, o corpo é seu texto. Nele se corporifica uma literatura viva, desenvolvida a cada apresentação, refletindo o conhecimento que se tem da tradição. Frases contemporâneas de cunho acadêmico como “pensamento do corpo”, “fala do corpo” etc., importadas de pensadores europeus ou norte-americanos, já eram muito conhecidas da tradição afro no Brasil há pelo menos 100 anos, daí o ditado popular “tem que dizer no pé” usado para definir a performance de um bom sambista (Cavaquinho, Jair do. Entrevista Pessoal).

            Na performance, a cultura da cena mais do que por marcas, símbolos e formas (matrizes), se efetiva pelo conhecimento que o performer traz em seu próprio corpo quando executa a combinação dos seus movimentos no tempo e no espaço (Ligiéro, Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras 110-111) Dessa forma, procuro perceber uma associação de diversas matrizes culturais na construção de motrizes afro-brasileiras, capazes de se reconstruir na diáspora das Américas, reconfigurando elementos étnicos originários de diferentes países da África em rituais e festividades também oriundos daquele continente, mas reprocessados e recriados dentro do contexto opressivo colonial português ou espanhol, muitas vezes tutelado pela igreja e sob o guarda-chuva de um santo protetor, em que o ritual africano é restaurado dentro de uma nova moldura cristã, como foi o caso da congada ou da folia de reis.

            O elemento da transmissão dos saberes é muito importante, pois como tradição, se legitima através do contato de rituais/celebrações; o conhecimento se exerce através da própria prática em que o neófito é iniciado por meio do convívio com o seu mestre. Aparece ainda, em muitos casos, a contribuição pessoal do performer, não só fazendo o que aprendeu com mestre, mas ele mesmo desenvolvendo um estilo próprio capaz de rearranjar os materiais apreendidos e as técnicas da tradição em novas restaurações de antigos comportamentos, como examina Richard Schechner(“O que é performance” 32-37) com a sua conceituação de comportamento recuperado (Ligiéro, Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras 113-114).

 

O corpo em ação conjunta e complementar: cantar-dançar-batucar

            É natural dentro de uma roda de samba, tanto na década de 1930 como de agora, um sambista iniciar um simples batuque chacoalhando a minúscula caixa de fósforos como se fosse um instrumento musical clássico, imprimindo o ritmo da música. Quando a letra ainda não se faz presente, o canto surge com sons onomatopeicos ou mesmo “telecoteco... tecoteco... skindô skindô...”, até a memória trazer à tona uma antiga melodia ou algo de improviso, as letras vão surgindo de acordo com a inspiração do momento. É como se o ritmo não soubesse viver sozinho, precisa da sua expressão vocal. Mesmo quando todos os sambistas estão sentados em volta de uma mesa, seus corpos não permanecem rígidos como se estivessem em uma orquestra sinfônica. Os que não têm instrumentos passam a bater palma e os que ainda não se inseriram no conjunto, mesmo de fora, tocam algum instrumento improvisado, como garfo ou colher no prato; outros que permanecem ainda mais longe, instintivamente, se aproximam e começam a soltar as juntas, permitindo que as ondas sonoras lhes penetrem a medula, modulando o quadril para reproduzir o molejo da música, de forma que o corpo reverbere o batuque. Até os mais desafinados se sentem encorajados a entoar, quando não toda a música, pelo menos o refrão. Na roda de samba informal esse fato ocorre e podemos, então, perceber que na base do ritual afro-americano encontramos o cantar-dançar-batucar.

         A dança africana subsaariana caracteriza-se pelo seu movimento explosivo e concentrado, o envolvimento total do corpo e a sintonia com a percussão, gerando um contexto cujo sentido é fortemente espiritual atingindo, no êxtase, o seu apogeu, momento em que o transe, o encontro máximo com o divino, pode ocorrer ou não, dependendo do tipo de ritual e da preparação do médium para que isso aconteça. As danças africanas são incontáveis em seus estilos, variando conforme os grupos étnicos, ambientes e trocas mútuas através da história das migrações. Em todos os casos, a dança ocorre dentro de um contexto celebratório-ritualístico com grande capacidade de interatividade e participação do público presente, quase sempre pessoas do mesmo grupo ou de convidados e simpatizantes. Através do corpo, fala a etnia, num léxico próprio de movimentos articulados com ritmos e cantos que são emblemáticos da própria mitologia do grupo ou nação em questão (Ligiéro, Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras 131-132).  

         Bunseki Fu-Kiau afirma que a dança é somente um dos elementos da performance africana e não deve ser estudada separadamente. Ele propõe, em vez disso, o estudo de um só objeto composto (“amarrado”), o “batucar-cantar-dançar”, que seria, então, um continuum. Em sua análise, aponta que em quase todas as religiões africanas, os espíritos dos principais ancestres, quando venerados por meio do transe, voltam à terra para dividir sua sabedoria com seu povo. Nessas culturas os rituais acontecem em arenas, procissões ou de ambas as formas, complementarmente. Em tais espaços devotos tocam tambores, dançam e cantam em honra aos deuses e ancestres: “A vida seria impossível em qualquer comunidade africana sem os invisíveis e reconciliadores poderes de cura gerados pelo poderoso trio de palavras-chave da música e do divertimento.” (Fu-Kiau, Inédito). Fu-Kiau afirma que, quando alguém está tocando um atabaque ou qualquer outro instrumento, uma linguagem espiritual está sendo articulada. O canto é percebido como a interpretação dessas linguagens para a comunidade presente no aqui e agora. Dançar seria a “aceitação das mensagens espirituais propagadas” por intermédio de nosso próprio corpo, bem como o encontro dos membros da comunidade nas celebrações conjuntas, sob o perfeito equilíbrio (Kinenga) da vida. “Batucar-cantar-dançar permite que o círculo social quebrado seja religado (religare), de forma a fazer a energia fluir novamente entre os vivos e mortos”. (Fu-Kiau, Inédito) Podemos, então, entender que a clássica separação entre religião e entretenimento também não se aplica no caso das performances africanas, elas são formas complementares dentro do mesmo ritual.

 

Sotz’il Jay e a Performance Ameríndia                                  

            Os elementos da dança e suas complexas coreografias, o uso de máscaras e os elaborados desenhos corporais, a arte plumária, o canto e a dramatização de animais

Violeta Luna. Maíz.

Sotz’il Jay apresenta Oxalaj, na Escola de Teatro da UNIRIO, 2012. Foto: Zeca Ligiéro.

                                                                                                

selvagens e seres encantados mitológicos, o profundo sentido ritualístico e as encenações dos dramas arquetípicos são características em comum dos grupos étnicos que constituem o leque extraordinário ameríndio que vai dos esquimós à Terra do Fogo, independente das situações geográficas: montanhas, florestas ou cerrados. As performances culturais nativas, tanto das chamadas civilizações pré-hispânicas Maias, Incas, Astecas, como a do indígena da Amazônia ou dos planaltos, de fato não possuem nenhuma relação com as do europeu, mas apresentam aspectos muito semelhantes às formas asiáticas e africanas, embora revelem traços particulares e identidades próprias, assim como sistemas de linguagens distintos.

Estamos falando da concepção de um teatro arcaico que sobreviveu, que chegou à contemporaneidade e se manifesta por meio de performances feitas hoje em vários países preservando antigas tradições que reiteram comportamentos dos seus antepassados. Ao incorporar elementos atuais, procuram abrilhantar ainda mais suas performances enfatizando, mais fortemente, seus princípios. É verdade que muitas delas sobreviveram graças a um processo de negociação com a Igreja Católica e muitos de seus ritos se hibridizaram em festas e procissões aparentemente pouco católicas, mas que não são objeto deste artigo.

            Antes de apresentar o espetáculo, os atores do Sotz’il Jay se recolhem em silêncio, permanecem incomunicáveis, preparam-se para um ritual, sabem que o palco é o microcosmo de uma operação metafísica e que evocam entidades antigas e perigosas. Revigora-se a memória dos ancestres. O espetáculo Oxlajuj B’aqtun constitui um rito espiritual e artístico que dialoga profundamente com os ancestrais daquele povo indígena em diversos planos: intelectual, religioso e artístico; a começar pela evocação que a montagem faz ao, então, guia espiritual e coordenador da entidade, Lisandro Guarcax, sequestrado, torturado e assassinado em agosto de 2010, aos 32 anos (ele promoveu e pesquisou a arte pré-hispânica por meio das artes, impulsionou o movimento da Juventude Indígena em outros núcleos comunitários). No programa do espetáculo anunciam que tudo é consequência de uma maneira de ver o mundo:

Cada vez que nós maias sentamo-nos para comer, agradecemos a cada um dos comensais pela comida. Não só a quem a preparou, senão também aos que compartilharam esse momento conosco nos permitindo estar ao seu lado. É que, para o pensamento maia, o fato de estarmos vivos e respirarmos o ar que respiramos, o habitar as terras que nossos ancestrais nos legaram para poder deixá-las no futuro aos nossos netos, não é algo que nos corresponda “por direito”, senão um presente que nos é entregue e pelo qual agradecemos. O agradecimento, desde o pensamento maia, é um espaço para o disfrute, para o reconhecimento da nossa felicidade por ser, por respirar, por podermos ser testemunhas cada manhã de como a vida se regenera.

O agradecimento, desde o pensamento maia, nada tem a ver com a submissão, com saldar dívidas, com as hierarquias. Ao contrário. É nossa oportunidade para parar, mirar ao nosso redor e celebrar que estamos vivos. Agradecer uma vida que é cíclica, que está em contínua transformação, que não tem princípio nem fim porque simplesmente é. Graças a observação astrológica, nossos avós maias desenvolveram uma matemática de grande exatitude que analisa e reflete esse movimento cíclico que se resume em nosso conceito de “zero”. Um conceito que, longe de representar o vazio ou o nada, contém em si a essência da Plenitude. Assim, em nossa matemática de base binária representamos o zero com uma semente, com um grão de milho. Uma semente que é a um tempo o fim de uma planta e o início de outra, porque todo fim de um ciclo implica inevitavelmente o início de outro, porque nada desaparece nem morre, porque tudo se transforma. Tudo está em movimento, a galáxia que habitamos se expande no espaço e no tempo de forma circular, o DNA que nos compõe é uma espiral infinita... tudo está entrelaçado, nada termina. Por isso, o “Zaqates” outro dos valores angulares da Cosmovisão Maia. A importância de terminar as coisas, de fechar os círculos e fechá-los bem, de não deixar nada pela metade. No trabalho, nas relações, na vida. Porque no universo tudo flui de maneira circular, porque tudo está interrelacionado e unido, cada vez que não terminamos algo e o deixamos inconcluso, geramos um desequilíbrio que frequentemente costuma ser o início da infelicidade e do sofrimento. Apesar de séculos de empobrecimento e discriminação, nós os maias seguimos sendo os netos e as netas de uma civilização milenária que “desde  os primeiros tempos fala aos tempos que virão”, com a mesma firmeza pausada com que Tat Lisandro Guarkax, artista maia kaqchikel, fundador do Grupo Sotz’il e neto dos Aj Kaweq, redimensionava quinhentos anos de invasão com uma frase simples: “No tempo em que Colombo veio à América para comprovar se o mundo era redondo, nossos avós e avôs maias conheciam o universo.”. São as vozes dos primeiros tempos que falam aos tempos que virão, que brotam da memória dos maias para que as escute o mundo.  (Revista da VI Muestra Latinoamericana de Teatro de Grupo. São Paulo (Brasil), 26 de abril de 2011, tradução de Cláudia Lora)

            Ao findar o espetáculo, também se isolam para realizar o que Schechner chama de “cool off”, se esfriar. (Schechner, “Ritual” 71). O próprio espetáculo elaborado em etapas de um ritual se constitui de uma motriz cultural em si, congregando conhecimentos milenares por meio do cantar-dançar-batucar, complementado pela sabedoria de narrar histórias míticas, fundacionais, pertencentes à cosmovisão maia. O Sotz’il Jay, grupo contemporâneo de investigação de teatro/dança/música se declara como um coletivo de investigadores em busca das “verdades ancestrais” da tradição maia, cuja religiosidade foi fortemente reprimida, mas que continua presente em inúmeros rituais e celebrações, dentre os quais o Rabinal Achi([2]). Seu trabalho contextualiza a noção cíclica da vida percebida e praticada nas comunidades tradicionais, contrariando a crença de que a cultura maia prega o fim do mundo. Na cultura maia o encerramento de uma era implica uma longa conta de cinco medidas de tempo, como q’ij (dia), winäq (20 dias), tun (360 dias), k’atun (20 anos) e b’aqtun (400 anos), os quais vão mudando com o passar dos dias e numerais do calendário sagrado, o Cholq’ij. Se antepõe ao b’aqtun (unidade de medida do tempo mais larga), o número sagrado treze (Oxlajun), o resultado é a duração de uma era maia, quer dizer, Oxlajun B’aqtun equivale a treze períodos de 400 anos ou 5.200 vezes 360 dias, pois na era maia o tempo caminha através de uma espiral em que o passado e o futuro se situam de forma paralela.

 

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Oferenda – Ritual em torno do fogo sagrado, Centro Cultural Sotz’il Jay, Sololá, Guatemala, 2012. Foto: Zeca Ligiéro.

 

            O trabalho do grupo consolidou-se com a criação do Centro Cultural Sotz’il Jay, a casa do Grupo Sotz’il, em Sololá, distante umas duas horas da capital Guatemala. Eu havia visto o grupo se apresentar em São Paulo, por ocasião da VI Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo, em julho de 2011. Chamou-me atenção o seu espetáculo, um ritual do principio ao fim, sua música, sua dança, uso das máscaras de animais, enfim, me surpreendeu em todos os detalhes. No dia seguinte do espetáculo assisti também uma oficina sobre o trabalho corporal e musical do grupo, novas surpresas: o treinamento tinha muito a ver com capoeira, sobretudo a sua estreita relação com a música e o balanço do corpo.

 

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Oferenda ao Fogo Sagrado – Centro Cultural Sotz’il Jay, Sololá, Guatemala, 2012. Foto: Zeca Ligiéro.

 

            Em 2012, participei de uma celebração de inauguração do busto de Lisandro no Centro Cultural Sotz’il Jay. Deparei-me com um ritual em torno da fogueira sagrada, liderada pelo xamã Gilberto Guarcax González, que é também um dos principais atores do grupo. Quatro sacerdotes se revezavam em cada ponto cardial, enquanto cantavam e ofereciam sementes de cacau, milho, velas em maços e um tipo local de bebida fermentada, além de litros de rum para a divindade do fogo. Não havia dança, no sentido que conhecemos, mas um movimento simétrico, litúrgico, repetitivo. A cerimônia era contida e concentrada. Ao final do ritual, os sacerdotes se recolheram num quarto, onde estava o altar das divindades maia, e de lá saíram quando haviam decifrado o que havia dito o fogo durante o ritual, procurando lavrar um entendimento também com a alma de Lisandro, que havia recebido as oferendas. Elas haviam sido aceitas, deuses e sacerdotes se comunicaram com o púbico passando, então, para uma outra fase, a da inauguração do busto propriamente, feito por uma artista guatemalteca que descreveu sua intenção e contextualizou a sua obra:

Estava em Toronto quando recebi a notícia que ele havia sido sequestrado e assassinado. Isso foi feito não sei por que razão...eu sei que não foi por acaso...tudo tem uma razão de ser. Mas há anos que estava com a inquietude de fazer um busto...não sabia de quem, nem de quê. Isso, quando li a notícia de Lisandro, eu disse: isso é o que eu tenho fazer! Fazer o busto de Lisandro Guarcax, para que sua memória não se perca. Para que, bem...os artistas são um pouco arrogantes, ou muito arrogantes. Porque, eu vou morrer, mas isso eu não posso deixar de fazer. Porque, está feito para que resista ao vandalismo que pode ocorrer, como acontece em muitas partes. Entrei com contato com uma organização que, não me lembro quem, me deu o endereço de um de vocês e uma senhorita me atendeu, me deu o contato do Sr. Anastácio e ele me disse que sim, que com muito prazer me permitia fazer o busto de Lisandro. (Ramírez, Acervo NEPAA, UNIRIO, 2012)

Ela explicou como foi o processo de trabalho e como ela se inspirou nas peças tradicionais da cerâmica maia, mas decidiu que o busto seria em negro porque é a cor do morcego (quer dizer, “sotz’il”, em língua maia), e lembra o simbolismo do morcego que “não tem olhos, mas vê e sente muito mais além” (Ramírez, Acervo NEPAA, UNIRIO, 2012). E ao finalizar seu discurso ela lembra que, coincidentemente, esta homenagem ocorre no mesmo momento do julgamento

contra este grupo criminoso que tirou Lisandro de nós, mas também o julgamento que está sendo realizado contra o General Efraín Ríos Montt[3]. Esperamos que os juízes e magistrados tenham a sabedoria, a sensibilidade e o manejo da lei para que essas pessoas sejam julgadas. Não queremos vingança, queremos justiça. E que eles reconheçam o dano que fizeram. Agradeço você à atenção. Muito obrigada.

Representantes do grupo e a esposa do diretor assassinado também falaram na ocasião. A cerimônia terminou com um almoço servido com uma variedade de comidas feitas à base de milho.

            A relação comunitária e familiar é muito forte. No site do grupo lemos:

Esta montagem acontece em nome dos nossos avôs e avós, a eles devemos os conhecimentos e a inspiração, estamos aqui para continuar o seu legado. Também é uma homenagem a todos os avôs e avós que lutam para manter o equilíbrio desde a Resistência do Povo Maia. (Endereço do site do grupo Sot’zil Jay: <www.gruposotzil.org>.)

Resistência a séculos de exploração colonial e de décadas de feridas pela guerra civil, conjunção histórica comum a vários países da América Central ou da América do Sul. O trabalho surge da necessidade de socializar os conhecimentos milenares maias reprimidos pela sociedade atual. Como costumava dizer Lisandro Guarcax, em sua língua-mãe, “desejamos que todos os nossos esforços se traduzam em conhecimento do outro”.

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Demonstração do grupo Sotz’il dos diversos instrumentos musicais maia. Oficina realizada no NEPAA – UNIRIO, em 2012. Foto: Zeca Ligiéro.

           

            O grupo pesquisa a tradição Maia de diversas maneiras, coletando antigos instrumentos musicais (flautas, ocarinas, apitos, cornetas, tambores, etc.) ou recriando-os a partir de pesquisas realizadas em museus e nos sítios arqueológicos, copiando-os dos murais, também incorporam instrumentos musicais de outros grupos ameríndios dos Andes. Da mesma maneira, recriam as danças, com seus jogos e  poses características das antigas civilizações, com a ajuda de pesquisadores que se associaram ao grupo. O grupo visitou o NEPAA – UNIRIO dando uma oficina de instrumentos musicais, um concerto, além de apresentar seu espetáculo Oxlajuj B’aqtun. Em relação à dança tradicional, podemos perceber a pesquisa de um léxico de personagens míticos, como o Jaguar.

 

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Mural Maia, a presença do Deus Jaguar.         O Deus Jaguar na peça Oxlajuj. B’aqtun. Acervo Sotz’il Jay

                                                                      

             

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Ilustrações de movimentos das danças tradicionais maias extraídos dos murais, a fim de reproduzí-los em seu espetáculo Oxlajuj B’aqtun. Acervo Sotz’il Jay. Imagems cortesia de Cortesía de Zeca Ligéro.

 

            Em meio a uma relação temporal e espacial plena de símbolos e analogias, a dramaturgia desce ao plano dos conflitos terrenos. Os senhores de Xib’alb’a’ (os donos do submundo) enfrentam os gêmeos Jun Ajpu’ e Yaxb’alamkej, representados como o ser humano e o espírito. Eles refletem as forças duais mais necessárias à existência. O conflito dá-se por intermédio do jogo e da dança inspirada nas chamadas danças folclóricas e nos murais Maia.

 

Ritual e Jogo

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O jogo da bola tradicional Maia é incorporado na criação cênica. Foto: Acervo Sotz’il Jay, cortesia de Zeca Ligéro.

 

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Ritual e Jogo se mesclam na cena. Foto: Acervo Sotz’il Jay, cortesia de Zeca Ligéro.

 

            Poderíamos comparar a iniciativa do grupo em reproduzir os murais tradicionais à da dançarina Isadora Duncan, que se inspirou em poses e posturas que imitavam frisos gregos e as pinturas de dançarinos nos vasos e cânforas, para romper com os padrões  do “antepassado, aristocrático, e palaciano ballet” (Fazenda 70)  na criação de uma “nova dança”, que se distancia dos modelos vigentes propondo olhar a arte com mais liberdade e vigor, uma arte de retorno ao natural, como referência à arte libertadora. Já o propósito do grupo é totalmente diferente, pois recorre a uma identidade mítica, arquetípica, para articular um forte discurso de resistência. A pesquisa do grupo incorpora os antigos murais das diversas dinastias maias para melhor contar a história dos antepassados, cujas performances combinam perfeitamente o quarteto cantar/dançar/batucar/contar. Mas de forma distinta, o grupo tem um compromisso com a tradição e nela mergulha para refletir sobre um passado que tem sido reprimido ao longo dos séculos até o momento presente, de forma violenta.

Zeca 13 b

Caminho de acesso ao Centro Cultural Sotz’il Jay a partir da rodovia perto de Sololá, Guatemala, 2012. Uma tradicional mulher maia com uma criança em um braço e o celular na outro. Foto: Zeca Ligiéro.

 

            Além dos elementos teatrais, a criação coletiva dirigida por Víctor Manuel Barrillas Crispín – com nove atores em cena – costura referências da dança e da música sempre a partir de suas raízes. O grupo é formado por jovens da etnia kaqchikel e soma dez anos de trabalhos artísticos e culturais. Terra de milho ou Iximulew, é como se define, na Guatemala, a tradição maia. O grupo literalmente cria um ritual cênico que se aproxima do que vislumbraram o Teatro Antropológico (de Barba) ou o Teatro da Crueldade (de Artaud), mergulhando profundamente no que foi denominado por Grotowski como o “ator santo”. ( Grotowski, Em busca de um teatro pobre). Ignoramos, entretanto qualquer relação artística com a produção destes encenadores europeus cujas características analisamos no capítulo décimo este livro.

 

Danbala Wedo: jogo sagrado entre dois mundos que dançam

Zeca 3b

Vincent Harisdo e Armando Pekeno em Danbala Wedo, Festival Divinities Noires, Aneho, Togo, 2013. Foto: Yara Ligiéro

 

             Ao assistir no Festival Divinities Noires no palco de Aneho, no Togo, a apresentação dos dançarinos Armando Pekeno (da Bahia) e Vincent Harisdo (da República de Benin), ambos residentes na França, fui absolutamente tomado pela performance da dupla chamada Danbala Wedo, nome de um vodun bastante conhecido no Benin, em Togo e também no Brasil. Na mesma noite eu escrevi sobre esta performance mobilizado, principalmente, pelas novidades que corroboravam, em África, as minhas investigações em terras brasileiras sobre as Motrizes Culturais. Desta vez uma apresentação inserida dentro de um festival onde se apresentavam, principalmente, agremiações provenientes de casas de culto vodun, grupos para-folclóricos da região (Golfo de Benin e países vizinhos ao Togo) e com a visita esporádica de alguns dançarinos contemporâneos europeus como convidados especiais de cada edição do festival. A performnace era criada por dois dançarinos e uma pequena orquestra de seis músicos tocando variados instrumentos de percussão. Os dois dançarinos com total liberdade para trabalhar com a tradição, com uma profunda visão da imbricação das culturas jeje-ewe-iurobá e sua presença na diáspora brasileira, ao longo de uns quarenta minutos de apresentação se articulavam e, entre as relações indissolúveis entre jogo e ritual, alternavam sua dança, realizada ora em solo ora em trabalho conjunto. Somado a isto, o fato de que não eram sacerdotes, nem propagadores de tradição alguma, colocavam-se simplesmente como “dançarinos contemporâneos” com uma relação profunda com as culturas africanas do Golfo de Benin.

Fui pego de surpresa quando comecei a pensar que o solo de Armando Pekeno era muito bem elaborado. Quando tocou a música de Nanã Buruquê pela orquestra de cinco ou seis músicos que o acompanhavam, vi seu corpo literalmente se transformar em lama, em caranguejo, em bicho que nasce do barro mole. Sua pele negra revestida de tinta branca me lembrou imediatamente a dança Butoh, acentuada pelos seus movimentos lentos. Mas o seu diálogo com a percussão me fez imediatamente mudar de continente, e se havia ainda algo entre Kazuo Ohno e Armando, é porque em ambos a dança nascia como algo líquido, fluido. Ambos eram calvos e tinham o corpo todo pintado de branco. Mas Armando não dramatizava o gesto como Ohno, seu gesto fluía menos como rio que já sabe o caminho do leito e mais como larva incandescente que ora desce e ora sobe a montanha num caminho inverso, ou ainda nos toca por um atalho inesperado. Quando me entretive neste solo, me espantei quando vi do outro lado do palco, a figura do Vincent Harisdo vestido como uma antiga dama da corte, uma roupa um tanto bizarra, uma figura que poderia ser uma mãe de santo do Candomblé, da Santeria ou do Vodun, ele também com o rosto, a cabeça careca e os braços pintados de branco. (Ligiéro, "Ano Novo, novas intenções”)

            Quando apresentei o vídeo desta performance no Instituto Hemisférico de Performance em Nova York, fui perguntado por que dançarinos se mascaravam de branco à maneira do Butoh. Seria uma influência da dança contemporânea? Pensei no simbolismo iorubá, a tradição do Golfo de Benin mais conhecida no Brasil, à qual eu me havia filiado como praticante, mas realmente não ousei arriscar, pois no candomblé não se usa pintar o rosto e os braços de branco e somente nos rituais de iniciação a cabeça é parcialmente pintada. O editor do meu livro Initiation into Candomblé: Introduction to African culture in Brazil, Kwasi Konado, explicou que a pintura branca sobre o corpo era conhecida em Gana, entre os Akan, “tratava-se de uma argila branca retirada dos rios (sagrados) chamada de ‘hyire’ aplicada sobre os braços, rosto e pernas para simbolizar sacralidade / santidade, pureza e vitória.”. Por sua vez, ele mencionou também a presença dos ewe/fon que migraram para a parte oriental do Gana no século XVIII e XIX onde muitos ainda vivem (e também em outras partes do Gana) até hoje. Portanto, a pintura corporal que aparentemente se liga à arte do Butoh, aqui pertence a um simbolismo africano muito antigo e assimilado por diversas culturas.     

            Retomando a questão do ritual e do jogo, pude notar na performance algumas características intrigantes:

Em seu semblante não havia santidade alguma, nenhum ar religioso. Não era uma obra que reverenciava o princípio religioso, no sentido da adoração, como as inúmeras que ocupavam o palco naquele festival, embora houvesse um princípio ritualístico em poses e mesmo nos movimentos das danças, nas quais reconhecia, principalmente em Armando, a relação direta com a dança de alguns orixás, conforme o ensinamento tradicional da dança afro-baiana. (Ligiéro, “Ano Novo, novas intenções!”)

A questão de gênero emerge sem, contudo, trazer propriamente alguma bandeira ou reivindicação. O fato de ambos os homens usarem a roupa típica das mães e filhas de santo (do vodun africano, da santeria cubana ou do candomblé brasileiro) é um diferencial, que tradicionalmente evoca a visão de mulheres poderosas da corte colonial, cujos trajes foram adaptados para estes rituais africanos principalmente no Brasil a fim de assegurar uma pompa imperial afastando-se, desta forma, dos trajes dos rituais tradicionais africanos. No candomblé, os orixás, divindades máximas de um panteão de reis e rainhas do Keto ou Oyo, ou mesmo as divindades dos voduns, identificadas também como pertencentes a um passado mítico cuja presença terrena devia se revestir de ouro e roupas suntuosas, se mescla com estilos inspirados nas damas das cortes europeias presentes tanto no Brasil colonial como nas terras colonizadas africanas (francesas, no caso de Benin e Togo). Além das saias rodadas e armadas com anáguas engomadas, acrescentou-se a bata em ponto chamado de “Richilieu”, obviamente de origem francesa. A transição entre os seios nus e as batas, aparecem na Bahia, por ordem de um governador geral, querendo moralizar os costumes (Ligiéro, Umbanda: paz, liberdade e cura 57).

            No mesmo festival que assisti à dupla de dançarinos, pude assistir também o cortejo das sacerdotisas de Glidji (foto abaixo), em que a moda antiga africana convive com uma moda mais contemporânea da saia rodada. No caso, chama atenção também, a pintura corporal com argila branca, destacando os braços, tronco e rosto. Algumas tem os seios nus e muitas delas cobrem o corpo com uma argila branca. O uso da cor branca nas vestes e no turbante, bem como a multiplicidade de guias com diferentes tipos de contas lembram, sem dúvida, um cortejo de sacerdotisas do candomblé ou mesmo um cortejo carnavalesco afro-baiano.

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Na apresentação do grupo de sacerdotisas dos 41 Voduns de Glidji foi possível observar as roupas brancas e que algumas delas tinham a saia rodada (influência da moda europeia colonial) e o corpo pintado de argila branca. Foto: Yara Ligiéro

 

            Em meu relato notei que, em alguns momentos, eram líricos, em outros, críticos e chagavam perto da caricatura, mas não queriam extrair gargalhadas do público. Eram comentários corporais sobre os personagens que viviam ao vestirem saias femininas.

Mas não havia tão pouco escárnio ou deboche. Havia sim, algo feminino naquele corpanzil de homens maduros. Os gestos de orixás, voduns femininos fluíam de seus corpos com a segurança de quem já não precisa da mimeses, pois a memória é centelha que se incendeia tanto no corpo do médium, como no corpo dançarino, neste caso, embora com finalidades diferentes. Suas representações de mulheres eram autoritárias, matriarcais como no ritual, mas algumas vezes, eram demasiadamente violentas, extrapolando os limites impostos ao ritual e adentrando por um entendimento arcaico dos seus princípios, que a própria codificação da dança ritualística amansa e adestra em gestos simbólicos e/ou emblemáticos, visando a fixação de conceitos chave sobre os mitos e o simbolismo que carregam. (Ligiéro, “Ano Novo, novas intenções!”)

Nos movimentos precisos dos dois dançarinos era possível perceber um corpo treinado, um corpo de dançarino contemporâneo com técnicas de diferentes procedências demonstrando um treinamento corporal em diversas tradições na procura de uma estética própria. Fazenda (Dança Teatral: Ideias, Experiências, Ações) enfatiza o conceito da construção de um corpo especializado baseado em Foster:

Cada técnica de dança “constrói um corpo especializado e específico, um corpo que representa uma determinada visão estética da dança de um coreógrafo ou tradição” (Foster, Reading Dancing 485). Ou seja, cada técnica de dança pressupõe um programa de desenvolvimento, da força, da flexibilidade, do alinhamento, do ritmo e do equilíbrio, desenvolve determinadas qualidades de movimento e o virtuosismo; coloca a ênfase em certas partes do corpo e relações entre si; pode assentar numa extensa nomenclatura e inúmeros elementos mínimos de movimentos susceptíveis de serem agrupados em sequência ou simultaneidade, a partir dos princípios anatômicos, fisiológicos e estéticos que regulam as combinações possíveis. (Fazenda 68)

E por estética, a autora especifica que se refere à 

preceitos estilísticos e a princípios de organização na produção de formas sensíveis que são culturalmente variáveis, de grupo para grupo e, no seu interior, mobilizados ou transformados, individualmente, no decurso das práticas performativas.

            O que mais chamou atenção na performance foi o foco do trabalho se dirigir para a relação com as danças ancestrais e seus possíveis enredos encenados, entretanto, de forma fragmentada, sem elencar propriamente dramas arquetípicos, mas como se fosse possível criar “tiras de humor”, como faz um cartunista nos jornais, sobre esta arqueologia dos ancestres divinizados em traços toscos, mas certeiros. Sequências curtas com fortes imagens descontraídas, com ou sem comentários, em outras células de movimentos.

Sem perseguir uma narrativa linear e lógica, algumas histórias foram contadas por um corpo que há muito convive com o mundo dos ancestres e deles extrai a sua seiva de vida. A precisão do gesto estava em ser apenas o que é. O dançarino não precisa provar mais nada, o dançarino cumpre o seu ato máximo, a dança dentro da música que o provoca, provocando-a de volta com determinados gestos e movimentos, já que o roteiro musical, também este, solto, obedece à lógica do jogo a ser jogado. O dançarino não pretende imitar nem o transe nem a forma da dança do vodun ou do orixá a que o médium, quando incorporado, aprende a dançar para o ritual e que, longe do templo, o coreógrafo imita como ensino dentro das academias de dança afro para o dançarino dançar. Aqui não. O dançarino apenas dança a memória que seu corpo descarrega. O gesto está uploaded com a própria carga que cria a sua existência. Ele não carrega intenções, não quer significar nada. Já nasce dizendo a que veio. (Ligiéro, “Ano Novo, novas intenções!”)

Neste sentido, podemos dizer que ambos os bailarinos se aproximavam do “corpo versátil”, como define Fazenda: “Para além destes corpos cultivados numa técnica de dança singular, há um outro corpo importante a considerar na contemporaneidade: o que é concebido por um projeto estético diversificado” (68). Ela aponta ainda como a possível origem deste corpo, tal qual indicado por Foster, na “Coreografia Experimental” da década de 1960, “quando as pesquisas coreográficas reduziram as barreiras que separavam as linguagens e os gêneros artísticos”. (72) Poderíamos acrescentar, no caso desta performance, que a pesquisa avançava de maneira inclusiva as barreiras entre arte e religião, não apenas de uma forma conceitual, teórica, mas com uma proposta de combinação entre o ritual e o jogo.

Zeca 16

Vincent Harisdo e Armando Pekeno em Danbala Wedo, Festival Divinities Noires, 2013, Aneho, Togo. Foto: Yara Ligiéro

 

            Neste momento, comecei a pensar que embora não houvesse uma arte devocional, tratava-se de uma prática que conhecia profundamente as tradições do Golfo de Benin e suas diásporas americanas, tanto dos voduns como dos orixás sem, contudo, se prender mimeticamente aos movimentos ritualísticos destas religiões, pois a performance se desenvolvia com uma liberdade que volta e meia abandonava qualquer clima litúrgico avançando para adentrar numa atmosfera de puro jogo, fragmentando uma narrativa de referência para implantar uma luta de encontros e desencontros de dois seres dançantes em tensão e relação lúdica. Parecia-me que a criação do movimento não nascia da tentativa de imitar para recriar uma partitura conhecida de algum orixá particular, como é feito normalmente na aula de dança afro. Os dançarinos se envolviam com o movimento da dança sagrada, mas de forma não convencional, sem pretender se espelhar para guardar uma memória coletiva aprendida. Era possível perceber que este “corpo de ideias” estabelecido pela dupla, ao se tocar e um carregar o corpo/movimento sugerido pelo contato físico com o outro, se aproximava do que ficou conhecido, a partir da década de 1970, como contact improvisation, cuja invenção foi atribuída a Steve Paxton. Fazenda ressalta neste “o desenvolvimento de competências sensitivas fundadas em determinados princípios que regulam a interação entre os dois corpos – tocar, transferir o peso de um corpo para o outro, preservar um movimento fluido e responder, continuamente com novas situações” (73). Ela ainda acrescenta:

A prática do contact improvisation obriga a um conhecimento de sensações internas provocadas pelo movimento e exige uma capacidade de reagir instantaneamente às situações, de modo a viabilizar a continuidade do dialogo entre os intervenientes e a garantir uma segurança física, pois como diz Steve Paxton, “o que o corpo pode fazer para sobreviver é mais rápido do que o pensamento.” (Video Fall After Newton: Contact and Improvistation 1972-83). (Fazenda 73) 

Entretanto, o jogo não se estabelecia apenas pelo contato físico, mas pelo sentido que cada movimento era percebido pelo outro. Novamente, a performance escapulia de uma definição ortodoxa quanto ao gênero ou estilo que abraçara. Não se tratava de uma sátira dos trejeitos e movimentos da dança mas, muitas vezes, a própria brincadeira com “gestos sagrados” era experimentada com liberdade e, sobretudo, visível no estilo de Harisdo, mais bufônico, que por seu corpo ser pesado, robusto, trazia para a dança, inevitavelmente, momentos de puro humor.

Iniciaram um interessante jogo. Armando voltou agora também vestido em uma saia rodada de baiana de santo. Mas o jogo não era uma brincadeira de dois dançarinos alegres imitando mães de santo. Não. Cada um trouxe seu universo para uma conversa franca entre dois estilos distintos. Armando, oblíquo, sinuoso, transforma seu corpo em pedra, argila, serpente, corda, bicho de quatro patas não por puro exibicionismo, mas porque seu corpo cumpre um solene ritual de imprimir no ar o grafismo das antigas cavernas, como se nós, ao vê-lo, experimentássemos o estado alterado da mente dos antigos xamãs. Não há misticismo, entretanto, apenas a fruição do corpo na necessidade do diálogo com a música cantada e batucada. Vincent, com o corpo grande que traz a espiritualidade sólida, a massa muscular que frágil se desmonta para ouvir, cheirar, sentir, ver o outro partner atiçando-o à criação conjunta. Em seu gesto largo o volume de paquiderme se espicha como um leão na força do pulo e do giro e como uma grande águia ele inventa novas jogadas, dando-nos a certeza de que é possível, através do jogo, amar o que nos é absolutamente diferente, ser sem ser exatamente o nosso oposto. O jogo aqui é franco, direto, sem falsetes, sem falsidade. Uma peleja de sábios em um tabuleiro, uma orquestração de veteranos músicos de jazz que versejam sobre assuntos que lhes são caros, mesmo que já conhecidos, e os discorrem em imagens e fraseados com o viço da primeira vez, na medida em que novos prismas abrem a possibilidade de novas luzes e novas ideias, pois, há ponto comum. Estão desarmados, deixaram o vício do exibicionismo do lado de fora do palco. Já não querem provar mais nada também, mestres das “artes do corpo desarmado”. (Ligiéro, “Ano Novo, novas intenções!”)

            Em suas aulas e na preparação de alguns de seus espetáculos, Amir Haddad falava muito sobre a diferença do corpo do ator “armado” e “desarmado”. O corpo armado é fruto da imposição de um sentimento planejado, ou seja, o ator já sabe o que sentir naquela determinada situação e de alguma forma adianta-se, impondo e posicionando o próprio corpo determinadas posturas à priori, com as quais ele pensa poder melhor captar/expressar o sentimento de determinado momento do seu personagem mobilizado, naturalmente, pelo roteiro de ações físicas com a qual desenha seu personagem ao longo de uma partitura de gestos e expressões vocais. O método que aprendi com ele e, que procuro desenvolver à minha maneira, é de que o próprio jogo determina o sentimento do personagem e este, mais verdadeiro do que o “armado”, porque não é representado, mas nascido do jogo, tem o viço da espontaneidade e, assim, cria um estado suspenso de jogo, ao qual Amir chamava de “bolha”. É como se todos os atores e espectadores estivessem em uma única bolha, “abençoada” do jogo, a qual alimentávamos e éramos alimentados por meio de nossa emoção como ator e/ou espectador. Naturalmente, como se tratava de teatro, além do jogo do corpo, a palavra determinava uma série de implicações, inclusive incorporando sempre narrativas sobre comportamentos humanos, reações, situações, etc. No caso, do jogo cênico da dupla de dançarinos não havia palavra, apenas alguns poucos sons musicais, acobertados pela orquestra de atabaques e música, eventualmente, cantada. Então, nitidamente, não havia uma história a seguir ou a perseguir. Era puro jogo, cada espectador criava a seu enredo no próprio sentido de provocação, característica trazida pela performing art. Os iniciados nas religiões africanas e afro-brasileiras podiam associar os movimentos às tradições, outros poderiam ler de acordo com o seu próprio repertório.

            Um aspecto que chamou-me a atenção era a questão de se instaurar em determinados momentos, uma espécie de espelhamento, obviamente longe da ideia de um coro, pois se estilhaçava em outros momentos, mas alternando-se com o compartilhamento de movimentos comuns.

Os dois homens negros carecas pintados de branco, vestidos de mulher, nos remetem ao espelhamento. O espelho, entretanto, não reflete a própria imagem do dançarino, mas estampa a cristalina diferença, a peculiaridade de cada um, o estranhamento diante do outro. E quando o gesto de um reverbera no corpo do outro, o espelho se estilhaça em cacos de vidro – fragmentos de gestos em sequências duplas repetidas, parecem recuperar o princípio do cubismo que Braque e Picasso desconstruíram a partir das máscaras e corpos de madeira africanos vistos nas exposições coloniais em Paris. Um painel de gestos, poses, posturas africanas e afro-brasileiras é puro território de jogo plástico e lúdico, a travessia do Atlântico negro em frações de segundos e minutos. Então, os espaços entre dois se abrem: são portas, janelas, varandas, salões, enseadas, baías, golfos a serem preenchidos por gestos que insinuam histórias. Insinuam para que completemos, pois se fosse dança e história completa caberia dentro de um HD. Vodus, orixás, reis, rainhas, deuses, semideuses ao lado cativos e libertos. Esta dança é jogo, ritual, é performance. Outro teatro, pré-dramático. Em seus gestos, fluem os pais, as mães e suas tribos muito antigas no desenrolar de uma memória corporal. Fazem uma festa inusitada na mistura de tempos heterogêneos harmonizados pelo tempo de jogo sagrado com momentos de humor, ternura, crueldade, acreditando que mesmo os deuses, em seus momentos de descuido, têm sempre algo de humano. (Ligiéro, “Ano Novo, novas intenções!”)

O título Danbala Wedo é outro enigma, pois não havia sido anunciado na programação oficial do festival e só obtive conhecimento do mesmo muito tempo depois. Trata-se de uma alusão direta à divindade Danbala Wedo, do mais antigo panteão dos voduns (Loa ou Iwa) da região dos ewe-fon. Quando assimilado pela tradição vizinha iorubá recebeu o nome de Oxumaré (Ver Ligiéro, Iniciação ao Candomblé), que é como o conhecemos no Brasil, embora tenha sofrido algumas alterações, como veremos em seguida. Segundo a investigação de Maya Deren, Damballah é tão antigo, tão venerável, bem antes do mundo ser conhecido e de todos os problemas começaram. Sua imagem é benevolência, inocência paternal, o grande pai de quem nada se pede além das bênçãos. Como “Dan”, a origem e a essência da vida. Damballah é inalterada pela vida e por isso é, ao mesmo tempo, o passado antigo e a garantia do futuro. Ele é representado como uma cobra, arqueada no caminho que o sol atravessa o céu; por vezes, a metade do arco é composto de sua contraparte feminina, Ayida, o arco-íris. Damballah e Ayida juntos representam a totalidade sexual, englobam o cosmos como duas serpente enroladas sobre o mundo (ver Deren, The Divine Horsemen:The Voodoo Gods of Haiti). Já o Orixá Oxumaré é uma única divindade que metade do ano é masculina e outra feminina, mas igualmente é representado pela serpente.  

            Ao incluir Danbala Wedo como uma performance que trabalha com as motrizes culturais africanas e afro-brasileiras procurei deslocar esta prática do sentido eminentemente religioso, para pensá-la dentro do âmbito artístico. Escolhi uma performance que abarca os dois universos: o religioso e o artístico sem, contudo, estabelecer uma linha divisória nítida, uma vez que a criação artística inclui o universo mítico, sua cosmologia, suas linguagens expressivas e, em alguns casos, trazendo o que Taylor chama de “repertório”, culturas incorporadas pela tradição oral cuja investigação, neste caso, vai além das portas das salas de aula de dança, para pisar na terra batida dos ancestres, trazendo de volta para o palco, não somente o próprio repertório, como o elemento propulsor de toda performance africana: os tambores e outras formas percussivas. No caso de Danbala Wedo, a dupla traz uma orquestra de ogans, músicos que tradicionalmente conduzem o ritual do transe jeje/ewe/iuroba, ou seja, aquele que aceita as ondas divinas, já que Deus se materializa no próprio som, que faz vibrar os tambores para o ritual, como interpreta K. K. Fu-kiau em relação à outra tradição subsaariana, a Congo. O poderoso e indivisível trio apontado como imprescindível pelo filosofo do Congo, aparecia claramente na performance da dupla: cantar/dançar/batucar. Já o contar, acrescentado por mim, não era tão nítido neste caso, já que a narrativa solta e repleta de frases, comentários, era fragmentada em diagramas, tiras de humor, lutas, transformações, dança ritualística. Dentro de uma visão contemporânea, poderíamos dizer que a dança conta a sua própria a história, do que ela é constituída, expondo a sua essência em detalhes, indicando o seu fundamento, o DNA da sua performance, aplicando aqui o conceito de Diana Taylor (149).

A única formalidade, que não chega a ser uma regra fixa deste jogo é deixar que a dança não pare de se inventar, não pelos quereres de suas mentes e vontades, mas pela consciência exata de que só assim é possível um diálogo assim tão completo sem se gastar uma só palavra. (Ligiéro, “Ano Novo, novas intenções!”)

            Ao indicar o conceito de Outro Teatro para uma apresentação de dança, não quero esvaziar o termo dança que também, por sua vez, tem avançado em direção ao teatro. Quero apenas detectar e apontar em práticas como esta, de afro-contemporâneo, que ao trazer o dispositivo das motrizes culturais de determinadas tradições africanas, além de opções e conotações étnicas, éticas e políticas, que não estou abordando aqui, adentra-se por um tipo de performance em que, inexoravelmente, o quarteto cantar-dançar-batucar-contar aparece não como forma ou como conteúdo, como se imagina quando se relaciona motrizes com matrizes, mas como algo que vai além da compreensão racional, mobilizando a lógica dos sentidos. O palco não é metáfora da vida, o palco é a própria vida ou como quer Artaud em “A metafísica e a encenação”:

Afirmo que o palco é um lugar físico concreto que deve ser preenchido e que se tem de dar uma linguagem própria concreta. Afirmo que esta linguagem concreta, destinada aos sentidos independente do discurso, tem de primeiro satisfazer os sentidos: afirmo que há uma poesia dos sentidos e outra da linguagem e esta linguagem física concreta a que me refiro só é verdadeiramente teatral, na media em que os pensamentos que exprime estiverem para além do alcance da linguagem falada. (Artaud 57)

            Maria José Fazenda procura mapear o universo da dança e as divide em três grandes blocos: as danças teatrais, as danças rituais e as danças sociais (Fazenda 43-56). E, obviamente, uma quarta que transitaria entre as outras duas ou três. Por dança teatral entende-se toda e qualquer dança que necessita de um palco e um espaço cênico e que tem uma coreografia e/ou um espetáculo a apresentar. Por dança ritual, aquela que faz parte de um ato de devoção religiosa; já as danças sociais são aquelas onde não há separação entre os espectadores e performers. Esta sínstese ajuda-nos a entender as especificidades de seus estilos e funções e os contextos onde acontecem. Mas ela mesma adverte sobre as “deslocações e transformações” processada pela dança contemporânea, que tem se alimentado de uma diversidade de gêneros, estilos e propósitos. Neste sentido, Danbala Wedo, indo tão profundamente ao cerne religioso da dança tradicional ewe/fon/iorubá, a traz para o convívio do puro entretenimento por meio de um “jogo sagrado” sem, contudo, forjar na performance uma pretensão de culto ou de religiosidade, mas absorvendo a cosmovisão do mundo ancestral em questão.

 

Considerações quase finais

         Nessas tradições distintas, sem nenhum contato entre si, mesmo guardando as devidas diferenças, é possível perceber pontos de contato quando falam através do corpo de performers, que artísticamente estão comprometidos porque mobilizam-se por meio de motrizes culturais, se emprenham de sentidos míticos e, mesmo que completamente inseridos na sociedade de consumo, não abrem mão destes valores. Por outro lado, é possível perceber que dentro de ambas as tradições maia e jeje/fon/iorubá, as suas religiões adoram as forças da natureza, utilizam a medicina natural encontrada a partir da manipulação de raízes e folhas, acreditam que a alma dos mortos retorna à terra para ensinar ou para evoluir através da reencarnação. Elas têm outro ponto em comum, que particularmente nos interessa: suas performances espetaculares. Em ambas notamos o mesmo cantar-dançar-batucar como um todo indivisível e inseparável. Ambas as performances são interativas e dialogam com o ambiente onde acontecem. O público permanece em roda, reagindo a tudo que os brincantes ou “performers” fazem (Ligiéro, Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras 74).

            Neste estudo comparativo procurou-se discutir o conceito de performance cultural e performance artística no âmbito das performances africanas e ameríndias, cujo eixo central é o corpo. Por intermédio das motrizes culturais os conhecimentos ancestrais são restaurados num processo em que fica difícil separar onde começa o ritual e onde termina o jogo, onde vida e fé convivem juntos e mesmo o mais incrédulo dos espectadores perceberá uma estranha forma de arte que o transporta para outro tempo. Essas duas tradições tão antigas apresentam relações com narrativas corporais que são, de alguma forma, retomadas e recontextualizadas por artistas, dançarinos e performers no começo do século XXI. A apresentação procura enfatizar a poderosa contribuição afro-ameríndia como eixo de uma arte holística, integrada e desenvolvida, principalmente, por culturas comunitárias em oposição ao que propõe a indústria cultural.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Deren, Maya. The Divine Horsemen:The Voodoo Gods of Haiti. New York: Vanguard Press, [1953] 1973.

Fazenda, Maria José. Dança Teatral: Ideias, Experiências, Ações. 2 ed. Lisboa: Edições Colibri/Instituto Politécnico de Lisboa, 2012.

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Sapón, María Beatriz. El K’u’xja como base del sentir, pensary actuar de la c

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------. “O que é performance”. En: O Percevejo – Revista de Teatro, Crítica e Estética, Programa de Pós-Graduação em Teatro, UNIRIO. n. 11, v. 12, Rio de Janeiro, 2003. p. 32-37

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Sites consultados

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http://www.authenticmaya.com/rabinal_achi.htm

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Entrevista

Cavaquinho, Jair do. “Samba no Pé”, dirigido por Zeca Ligiéro no site do Instituto Hemisférico de Performance e Política da NYU.  Web.  1993/2007. (Performed in Rio de Janeiro, Brazil, in 1993; Screened in the Festival de Cinema Negro, Rio de Janeiro, 2007).

 


[1] “Estas vozes que vem dos primeiros tempos falam aos tempos que virão depois. Brotam da memória dos maias, mas dizem o que dizem para que o mundo as escute, ele que aos tombos busca rumo, perdido como cego em tiroteio. E estas vozes nos recordam que o centro do Universo está em cada um de nós, porque está em cada um os frutos que brotam em cada instante do tempo e em cada lugarzinho da Terra. E nos convidam a recriar o fio rompido da vida, a curar a dignidade violada da nautureza e a recuperar a nossa plenitude perdida.” - Eduardo Galeano - (tradução própria)

[2] Rabinal, criado e mantido pela comunidade Achí, Guatemala, o qual é apresentado durante o calendário católico sempre nos mês de janeiro. Objeto do capítulo onze deste livro.

[3] “O julgamento por genocídio, iniciado na Guatemala, do general Efraín Ríos Montt, voltou a pôr o país centro-americano diante dos horrores de seu passado. A guerra de 36 anos (1960-1996) entre o Estado e a URNG (Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca) deixou, segundo se calcula, 200 mil mortos, em sua maioria nas zonas rurais indígenas. O relatório publicado em 1999 pela Comissão de Esclarecimento Histórico, patrocinada pela ONU, deu conta das atrocidades cometidas contra a população civil, fundamentalmente por parte das forças militares. A informação é do jornal El País e reproduzida pelo Portal Uol, 29-03-2013.”. INSTITUTO Humanitas Unisino. Julgamento de general obriga sociedade da Guatemala a confrontar seu passado. disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/518904-julgamento-de-general-obriga-sociedade-da-guatemala-a-confrontar-seu-passado->. Acesso em 22 de maio de 2015.